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The acknowledgment of multiple other worlds, the worlds of others, is key to disentangling ourselves from our greatest social and technological deception, and re-entangling ourselves with a more meaningful and compassionate cosmology.
[O reconhecimento de múltiplos mundos, dos mundos dos outros, é chave para nos desembaraçarmos da nossa maior deceção social e tecnológica, e nos reconectarmos com uma cosmologia mais compassiva e significativa.]
James Bridle, Ways of Being (2022)
ACID FLAMINGO
Será real?
Quando tudo é credível e nada é verdade.
Gostaria de falar de outras coisas, mas não há outra coisa.
Gostaria de falar do semáforo das asas do peneireiro.
Gostaria de falar do espectro de corujas com o seu chamamento de telégrafo.
Gostaria de falar da águia-marinha, que alguns consideram a mais bela ave do mundo.
Gostaria de falar do camão púrpura, do abibe, da íbis-preta reluzindo iridescente e asfalto como o estorninho. E, claro, da gralha-preta e do corvo, sobre os quais já se disse o bastante.
Ou da águia-sapeira, com rosto de Júpiter e à procura. Há tantas aves perfeitas.
Mas foi o guarda-rios que veio veloz corrente abaixo.
Veloz corrente abaixo em emergência.
Dividindo as margens com techno e sonar.
Um chamariz de pesca feito de pirite e safira, código morse e madrepérola.
Foi o guarda-rios que deu as notícias.
Falou de navios de cruzeiro altos como cidades e cidades inteiras espalmadas em ímanes para o vosso frigorífico. Falou de uma máquina que recorda tudo. Uma máquina que nunca esquece.
Um sistema nervoso sem corpo. O sonho febril do Antropoceno.
E, depois, falou-me. O flamingo.
Pheonicopterus roseus.
O Flamingo Grande.
A mim todo.
Avisou-me que o predador se esconde na plena luz do dia —como uma lente.
Falou de uma grande ave negra. Uma sombra, sem nada de ave. A sombra lançada pela ausência de todas as aves. E depois foi-se. Continuando os seus lances rio abaixo em direcção ao mar.
Viajei 50 milhões de anos para chegar aqui. Sou tão antigo como os morcegos.
Como sei onde vou? E que quando lá chegar nada de nada haverá lá?
Não sou uma ave migratória.
Sou um viajante—como tu.
Sou um astrolábio e um sextante e um poeta.
Sou também um matemático.
A imagem que estás a ver tem mais de 2 biliões de anos. Um fóssil químico e cinemático.
Uma pintura rupestre viva, gerada por criaturas de outra ordem.
Um organismo fotossintético chamado Cyanobacteria começou a segregar um elemento invasivo na atmosfera terrestre. Oxigénio. Essa molécula altamente reactiva desalojou a atmosfera vulcânica, matando quase tudo no planeta. E resultando numa revolução de oxigénio.
As Cyanobacteria são a forma de vida mais bem-sucedida e numerosa que jamais existiu.
São as responsáveis pela vida na Terra tal como a conhecemos. Incluindo a produção de carotenoides, o pigmento orgânico responsável pela minha cor característica. O rosa. O fulgor das viagens no tempo. E é aqui que convergimos e nos reunimos, em torno do cinema de cristais líquidos das salinas.
E agora, biliões de anos mais tarde, estamos no precipício de mais uma revolução microscópica anunciada por um novo táxon de micro-organismos à escala planetária. Micro-plásticos e pixels.
Que criaturas efervescentes se dissolverão na solução ácida?
E eis a nova forma de vida, ou semelhante-a-vida, que floresce na sua esteira.
Estou na encruzilhada do real e do real replicante —sobre uma perna.
Se quiseres sonhar como um flamingo terás de dormir com as marés.
Lembras-te quando eras humano?
A arcádia nunca aqui existiu, a não ser durante o momento estroboscópico em que este lugar é gerado por nós habitando-nos uns aos outros. Mas a cada iteração de maior resolução o mundo perde fidelidade. Até ser só uma cópia. Um turismo de si próprio.
E um dia o delta terá desaparecido. As tempestades estão a ficar mais fortes. A montante, a água está a ser desviada para arrefecer a máquina. O mar acabará por vir e levar tudo.
Querem fazer um aeroporto aqui.
Já aqui existe um aeroporto.
Estamos aqui. Escuta. Tudo isto uma memória.
Um arquivo de uma coisa que aconteceu em tempos.
E nunca torna a acontecer.
Onde estarei quando precisares de mim?
Uma cópia original como tu.
Quando também foste um animal.
Sou já um alienígena prístino.
Mas a nossa senciência é partilhada enquanto o outro de cada um de nós.
O que signifiquei para ti? Por que fui um fac-símile de mim próprio?
Paraíso
Um refúgio no interior dos padrões que nos mantêm juntos.\
Jeff Wood
Conceito de Nuno Cera e Julia Albani
Texto: Jeff Wood
Drone: Pedro Farto
Música: Tarzana: Aerofoils in heat
Créditos: Jan Anderzen e Spencer Clark
Pós-produção áudio: Eduardo Vinhas
Tradução: Rui Cascais
Apoio: Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa
Agradecimentos: Ana Andrade – Evoa – Espaço de visitação e observação de Aves; André Batista – Salinas do Samoco; Afonso Rocha; José Alves – Universidade de Aveiro; Francesc Vidal e Julia Piccardo Valdemarin – Natural Parc Delta del’Ebre; Joana Rafael; André Tavares; Mariana Pestana; Galeria Miguel Nabinho; SEO/Birdlife – Riet Vell Nature Reserve.